O meu dia 25 de Abril de 1974 foi diferente do vosso. Foi um dia calmo e sereno em que, alegremente, continuei a passear, de um testículo para o outro, do meu pai.
Quando,passado dois anos, vim ver como era o ambiente cá fora, comecei logo por não achar grande piada à "Revolução dos Cravos". Estava a dar-me vontade de nascer, mas os médicos tinham de ir ali fazer uma greve e, por isso, disseram à minha mãe, toma lá uma injecção e aguenta-te à bronca mais 2 dias, que o povo tem de ir para a rua! Aquilo pareceu-me mal. Mesmo muito mal. Quando voltaram da rua, volvidos os 2 dias, eu estava com um mau feitio desgraçado: então fazem o 25 de Abril para tornar as pessoas livres e, depois, prendem-me? Então mas eu fiz mal a alguém? Vão-se lixar, mais às vossas revoluções! Por isso, o meu 25 de Abril não foi feito com cravos: foi a forceps. E, ao contrário do outro, teve muito sangue e hematomas. Mas eu não chorei. Quando cheguei cá fora, quis dizer-lhes:olhem que isto da Liberdade é espectacular!Vejam lá é se começa a chegar a todos! E tratem-na bem, que a Liberdade não é uma brincadeira de meninos! Mas não me deixaram dizer nada. Enfiaram-me um tubo nas goelas, meteram-me numa ambulância e mandaram-me para Lisboa, que Portalegre era o sub-mundo da Medicina.
Sobrevivi. E não guardo mágoas nem rancores. Nem aos médicos, nem à Liberdade. A história do que se passou em 74, tive de aprendê-la por conta da curiosidade porque, para a Escola, o curso do Mundo terminara na II Guerra Mundial. Em casa, tanto ouvi falar de uma tal "descolonização vergonhosa", como do meu avô comunista, que era manajeiro de um latifundiário, mas lia o Avante às escondidas. Por isso, ninguém me vendeu um 25 de Abril. Construí o meu próprio guião do 25 de Abril. Parece-me muito mal que as pessoas vivessem encarneiradas e não pudessem manifestar opinião. Ou reunir-se para debater ou reflectir. Ou que fossem presas e torturadas por fazê-lo. Mas também me parece muito mal ver as loiças de Cantão, e as pratas e as mobílias do latifundiários, agora na casa dos ex-trabalhadores. Porque isso é roubo e roubo é crime.
Penso que, uma vez por ano, muitos colocam na lapela o cravo vermelho, como quem agarra desesperadamente contra o peito,um álbum de fotografias amarelecidas, na esperança de regressar a um passado que já não volta. Outros coloca-no na lapela,como colocariam uma rosa ou um antúrio ou um gerbéria. Neste dia, alguns fecham portas e janelas e nem querem ouvir falar de tal coisa. Outros, falam neste dia com uma saudade tão distante que é como se doutra vida falassem.
Em qualquer dos casos, para o bem e para o mal, passou, está passado. E já lá vão trinta e tantos anos, que é aquela idade em que as pessoas devem ser adultas, e sérias, e conscienciosas. Por isso, mais do que saber o que fizemos com a Liberdade, importa definir o que vamos continuar a fazer com ela. Eu, vou-lhe pondo tubos nas goelas e balões de soro, na esperança que ela resista, como eu. Não lhe ponho cravos vermelhos. Mas também não quero pôr-lhe uma coroa de flores.
P.S. - O meu pai esteve na Guerra do Ultramar. Rebentou uma mina debaixo do jipe onde seguia. Não sei como, sobreviveu sem mazelas. O navio que o trouxe de volta a Portugal chamava-se "Ana Mafalda". À minha maneira, trago a Liberdade no BI...