Quer dizer, não é mesmo dela, que nem a conheço. Sei que é deputada, filha do Maestro Vitorino de Almeida, neta da escritora Odette Saint Maurice, irmã da Maria de Medeiros, enfim, é "conhecida", mas isso nem sequer me rala minimamente. As pessoas não têm culpa de nascerem de famílias conhecidas ou desconhecidas e se alguém tem complexos com isso, meta uma rolha. Como deputada, se agora me perguntassem de repente de que partido é, também não me ocorria no segundo seguinte. Admito que faça um excelente trabalho, no partido que for que, depreendo, seja o partido do Governo, apenas o desconheço porque será certamente em áreas que não me atraiam a atenção. Mais. Admito perfeitamente que seja mulher e mãe extremosa e sacrificada, a viver longe da família, a qual só vê ao fim de semana e que se desfará em trabalhos e recomendações. Como qualquer pessoa que vive longe da família, por motivos profissionais.
Nas empresas, uma pessoa quando vai trabalhar para fora, opta por levar consigo a família ou ir visitá-la quando pode e, caso seja possível, negoceia antes um pacote de viagens para que esse andar-de-cá-para-lá não se torne tão oneroso. É evidente que, na maioria dos casos, a opção de viver longe da família se prende com motivos profissionais e económicos, porque se ganhará melhor ou coisa parecida. Conheço bem a situação, dado que, desde miúda, passei grande parte da minha minha vida longe dos meus pais (ou, em certas alturas, só do meu pai) e/ou das minhas irmãs. São opções e sacrifícios que se fazem e que afectam as famílias no seu todo.
Mas não só nas empresas. No Estado é igual. Os professores ou os polícias começam as carreiras e são colocados no cu de judas, por exemplo. Aí, já nem sequer se trata de opções, é isso ou nada. É quase uma questão de sobrevivência das famílias. E, do lado de lá do espectro, temos aquela gente toda que emigra para sobreviver.
Isto tudo para dizer que não é só a Inês de Medeiros que tem que viver, sacrificadamente, longe da família. Há milhões de pessoas no mundo a viver longe das famílias. Há literalmente milhões de portugueses a viver longe das famílias. Arriscaria dizer que praticamente toda esse gente, quando vai visitar a família, paga do seu bolso. 99,99999% vá. Ou seja, não paga do seu bolso quem negociou um pacote de viagens ou quem tem direito a subsídio de viagens.
Como é sobejamente sabido, não está aqui em causa que a Inês de Medeiros não tenha direito a subsídio de viagens. Parece-me esse facto completamente esclarecido e não haver margem para dúvidas. Por qualquer razão (uma daquelas zonas em branco que os nossos códigos são pródigos a providenciar para que a cor da lei possa ser sempre cinzenta parda) a Inês de Medeiros pode ir a casa todos os fins de semana, que o Parlamento paga. Como paga a todos os outros deputados.
Calha é que a senhora vive um bocadito mais ali adiante que o normal deputado deportado de Onde Judas Perdeu as Botas mas ainda em território nacional. Provavelmente o deputado que vive em Onde Judas Perdeu as Botas lá para diante, onde as estradas são às curvas apertadas por muitos quilómetros demora mais tempo a ir a casa do que a Inês de Medeiros. Se calhar nem vai lá todos os fins de semana e, provavelmente a Inês de Medeiros também não. A Inês de Medeiros vive em França, logo por azar em Paris, que é cidade que, na cabeça dela, provoca imensas invejas, coisa que estranho imenso: estamos fartos de saber que os franceses são um bocadinho de nada xenófobos e os portugueses só começaram a ser melhor vistos quando chegaram os magrebinos. Mas lá está, cada um vive onde quer ou pode. Isso também não está em causa.
Mais. Nem sequer me provoca grande atrito emocional o facto de a factura das viagens ser mais alta que a do deputado que vive ali ao lado da Assembleia. Lá está, cada um vive onde quer ou pode. Infelizmente, os 1200 euros por semana fazem muita falta a muitos portugueses e prestam-se a grandes demagogias e comparações com ordenados mínimos e/ou aqueles subsídios de reinserção social à malandragem. A rapaziada normal aperta cada vez mais o cinto e aborrece-se com a facto de o Estado - nós todos, isto é, aqueles que pagam impostos, mais precisamente - pagar fins de semana na Cidade da Luz a uma senhora que ainda por cima sofre sempre daqueles ónus de ter sido colocada nas listas a deputados por ter um nome conhecido e uma cara gira. É um conjunto de factores que cria sinergias aborrecidas.
Não. Nada disto me causa esta náusea que tenho sempre quando se fala deste assunto. O que me chateia é esta história dos círculos eleitorais. O que me chateia é a Inês de Medeiros ter concorrido pelo círculo de Lisboa, recenciada numa qualquer freguesia da cidade. Não há nada na lei, aparentemente, que obrigue as pessoas a recensearem-se onde têm a morada oficial. É um facto que me chateia mesmo. Temos morada oficial, temos morada fiscal, temos que meter os miúdos nas escolas públicas das moradas onde vive o encarregado de educação, temos que ir ao hospital e ao médico de família da zona, enfim vivemos oficialmente obrigados pelos organismos do estado naquela zona circunscrita. Mas para se ser deputado, que é vá, um cargo alto da nação e essas merdas, já podemos ter não sei quantas moradas, uma para votar, uma para viver, uma para o que for preciso.
Caramba, a nação agradece o sacrifício da Inês de Medeiros, mas estou certa que haverá mais gente interessada naquele emprego. Mesmo que não lhe sejam pagas viagens. É assim, uma questão de honestidade moral, uma coisa ética, quanto mais não seja para deixarmos de andar aborrecidos com este fait divers e passarmos a ter outro qualquer para escrever posts.
(publicado em stereo no 100nada)
Adenda: Acabo de ler o post de António Filipe, que muda o caso de figura. Citando o post "Importa talvez começar pelo mais importante: é completamente falso que o Conselho de Administração da AR tenha decidido pagar viagens a Paris à deputada Inês de Medeiros. O que foi decidido foi atribuir a essa deputada um subsídio de transporte equivalente ao da maior distância dentro do território nacional, o que faz toda a diferença."
Sendo assim, realmente faz toda a diferença.